terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O Verdadeiro Amor Cristão





Parábolas de S. Lucas
Parábola do Bom Samaritano

“Próximo... é o que usa de misericórdia” (Lc 10,36-37)

A palavra «misericórdia» deixou de fazer parte da linguagem comum.
Para muitos, poderá ser estranho e até desconfortável falar dela,
pois estamos num tempo em que o homem quer ser
«autónomo e seguro de si». Além disso, esta palavra
parece evocar experiências eclesiais já esquecidas ou «superadas».

1. O Samaritano ou a escandalosa proximidade
e universalidade do Reino

■A redação de Lucas

Em Lc 10,25-37 temos dois diálogos (25-29 e 36-37) e um monólogo (30-35). Lucas fez deste e daqueles um todo. Não quer isto dizer que ele tenha sido o seu criador, mas tão-somente que o conjunto é sua obra literária pela redação, estilo e vocabulário.

Contudo, podemos perguntar-nos: os diálogos e o monólogo (parábola) já seriam um todo? Parece que não, porque a resposta de Jesus, no v. 28, é positiva: «Respondeste bem, faz isso e viverás», como também acontece em Mc 12,34, onde não se percebe qualquer intenção conflituosa. Ora o v. 29 sublinha a intenção hostil do doutor da Lei. É, pois, pouco provável que o primeiro redator dessa fonte tivesse colocado lado a lado uma nota positiva e outra negativa.

Quanto ao v. 29, ele vive da tensão com o v. 36. Segundo o v. 29: «Mas ele, querendo justificar a pergunta feita, disse a Jesus: «E quem é o meu próximo?”». A resposta era óbvia: o viajante ferido! Mas, depois de ouvida a parábola e a pergunta de Jesus tudo muda: o Mestre tinha introduzido uma ruptura na mentalidade corrente, ao ponto de tornar impossível não só a resposta como a própria pergunta. Para o futuro não haverá discurso sério sobre o assunto sem a correspondente relação de ajuda.
O Evangelista terá, assim, concebido a ideia original de explicar o mandamento do amor ao próximo com a ajuda da parábola do bom samaritano. Talvez se tenha lembrado de Mc 12, 33b, onde um escriba comenta: «amar o próximo como a si mesmo vale mais do que todos os holocaustos e todos os sacrifícios.» Importa sublinhar que o redator nada diz sobre o primeiro mandamento.

O diálogo é retomado nos vv. 36-37, e com ele regressa o termo ‘próximo’. Mas este chega renovado, com um novo conteúdo: passa de um significado passivo (de objeto) a um ativo (de sujeito). Estas duas acepções de ‘próximo’ e a consequente tensão introduzida no texto fazem-nos compreender, por uma lado, a dinâmica das parábolas de Jesus e, por outro, a intenção teológica de Lucas.

Na linha de J. Jeremias, podemos afirmar que o conceito de ‘próximo’ é resultado, não ponto de partida da história, isto é, de uma relação; a interrogação deu lugar à ação: próximo é aquele que ama, que manifesta o seu amor por gestos concretos de misericórdia.

Não há, por isso, lugar a uma qualquer casuística do amor. O que conta não é saber a quem devo amar, mas sim amar; dito de outro modo, segundo J. Fitzmyer, “o amor não define o seu objeto”. De fato, ao dar ao termo ‘próximo’ o sentido de «aquele que ama», Lucas inova e deixa de haver continuidade com Lv 19,18b: «amarás o teu próximo como a ti mesmo». Na verdade, podemos dizer que este preceito é esquecido e a atenção vai toda noutra direção: o próximo foi o Samaritano! Como tal estão ultrapassadas todas as barreiras étnicas.


A intenção de Jesus

Quanto à questão de saber se a parábola do bom Samaritano é obra de Lucas ou remonta a Cristo, parece pois razoável pensar que, se Lucas introduz a parábola como forma de revolucionar a acepção corrente de ‘próximo’, é porque a tinha já à sua disposição. Como sabemos, os discípulos não criaram, mas transmitiram as parábolas contadas por Jesus. É, pois, legítimo pensar que Jesus tenha sido o seu autor.

Sendo assim, importa indagar qual teria sido a intenção primeira do Senhor ao contá-la; Lucas é o único evangelista que a usa. Depois, na estrutura do seu Evangelho, situa-a no início da longa caminhada para Jerusalém e surge dentro do diálogo de Jesus com um doutor da Lei. O assunto em discussão prendia-se com o modo de «possuir a vida eterna». Jesus teria podido responder-lhe de forma académica, mas optou por contar uma história susceptível de interessar a uma criança, sem necessidade de explicações.

Ao fazer entrar em cena dois representantes da religião oficial, não parece que Jesus tenha querido virar o seu auditório contra os sacerdotes e levitas. Se assim fosse, o mais lógico seria escolher, para terceiro interveniente, um leigo judeu. Mas o que Ele criou foi um escândalo, ao apresentar um Samaritano. Este é um ‘herético’ e, segundo o ensino dos rabis, era equiparado aos pagãos, sem qualquer direito a figurar nos preceitos que regiam o amor ao próximo.

Também não podemos dizer que Jesus, ao fazer esta escolha, tenha querido ser simpático para com os Samaritanos, porque então estaria a provocar a ira dos seus ouvintes. Tem de haver, por isso, uma motivação mais profunda. Nesta parábola Jesus não Se serve de uma imagem para falar do Reino de Deus, mas de um exemplo concreto, a todos os títulos desconcertante para um judeu. A resposta do doutor da Lei não podia ser outra, impunha-se por si. Ela emerge dentro de um novo contexto criado pela parábola. Neste contexto, podemos «afirmar que Jesus contou a parábola porque a misericórdia constitui uma parte essencial da sua mensagem. Deus reina onde os homens começam a comportar-se como o Samaritano. Agir como o Samaritano, eis o que testemunha sempre e em toda a parte o acontecimento do Reino de Deus» (Lambrecht).

Ora Jesus já estava a fazê-lo e, por isso, era criticado e acusado injustamente. Deste modo, o relato não é apenas uma exortação moral do anúncio do Reino de Deus, mas uma defesa sua e uma justificação da sua missão e pretensão messiânicas.


2. O exemplo do Samaritano ou a permanente
provocação da misericórdia divina

Na parábola, o momento decisivo em que tudo muda, encontramo-lo no terceiro passante, um Samaritano, que, vendo um homem meio-morto, «se encheu de compaixão» (Lc 10,33). Os dois primeiros, ao vê-lo, passaram ao largo. Viram, mas foi estéril o seu ver. O ver do Samaritano é profundo: vai-lhe dos olhos ao coração e dali brota aquela improvisação que só a fantasia da caridade sabe fazer.


«Encheu-se de compaixão»
(Lc 10,33)

Esta expressão conduz-nos a um dos momentos mais belos da revelação do «coração misericordioso do nosso Deus» (Lc 1,78) e faz-nos pensar na comoção visceral que assaltou o Pai misericordioso ao ver regressar o seu filho (Lc 15,20). Diz-nos Lucas que Ele, «enchendo-se de compaixão», correu a abraçá-lo. Tanto o Pai como o Samaritano passam do ver ao comover-se e deste aos gestos de misericórdia.

O Antigo Testamento descreve-nos o agir de Deus com termos hebraicos: hesed e rahamim. O primeiro designa uma profunda atitude de ‘bondade’ e exprime uma relação de fidelidade entre dois seres. Quando se refere a Deus, quer expressar amor mais potente que a traição e graça mais forte do que o pecado. Se Israel não pode ter pretensões em relação ao amor (hesed) de Deus, dado o seu pecado, pode e deve ter confiança, porque o Deus da Aliança é “responsável pelo seu amor”.

O outro temo hebraico (rahamim) exprime o apego instintivo de um ser a outro. Este sentimento, segundo os semitas, tem a sua sede no seio materno (1Rs 3,26), nas entranhas e traduz-se imediatamente em atos: de compaixão, numa situação trágica (Sl 106,45) ou de perdão, nas ofensas (Dl 9,9). O Antigo Testamento atribui a Deus estas características quando, ao falar d’Ele, usa o termo rahamim. Diz-nos Isaías: «Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria» (49,15).

Em certo sentido, os termos hesed e rahamim expressam, respectivamente, a dimensão masculina e feminina do agir divino. A sua tradução oscila entre misericórdia e amor, mas o que emerge é a manifestação da ternura de Deus perante a miséria humana, convite permanente para que sejamos misericordiosos uns para com os outros.


Jesus, revelador do «coração misericordioso do nosso Deus» (Lc 1,78)

Não parece ser possível ler de outro modo a experiência que Jesus nos revela do Pai. Nela não há lugar para um Deus indiferente, “legislador”, justiceiro ou irritado com os pecados e erros dos seus filhos. Para Jesus, como já o reconhecia o Antigo Testamento, Deus é compaixão: é entranhas (rahamim). Este é o seu modo de agir e reagir perante os seus filhos. Deus sente por eles o que uma mãe sente pelo filho que tem no seu ventre. Deus tem-nos nas suas entranhas. A parábola do Pai misericordioso (Lc 15,11-32) apresenta Deus como um pai comovido até às entranhas pelo regresso do seu filho. Ao vê-lo, corre ao seu encontro, abraça-o, beija-o e convida a família para a festa!

Este é o mistério do amor misericordioso de Deus. O que Jesus procurou fazer durante toda a sua vida foi instaurar na história este modo de proceder. Deus é grande e santo porque ama a todos sem excepção e de todos se quer compadecer. Neste contexto, a misericórdia não é mais um atributo divino, mas a própria maneira de ser de Deus.

A revelação do coração do Pai dá-nos a medida exata do modo de ser e agir do Jesus: Ele identifica-se com o Pai. O seu programa, depois de vencidas as tentações do demônio no deserto (Mt 4,1-12) – que Lhe queria impor outra imagem de Deus – declara-o na sinagoga de Nazaré ao proclamar o ano jubilar (Lc 4,18-19), o ano da misericórdia do Senhor. Curioso é notar que Jesus interrompeu a leitura de Isaías precisamente antes de anunciar «o dia da vingança da parte do nosso Deus» (Is 61,2b), como que a dizer, esse não é o meu Pai e Deus das Misericórdias que vos quero revelar.

Jesus viveu toda a sua vida fazendo-se próximo dos deserdados da vida, para lhes mostrar que eles têm um lugar especial no coração de Deus. E, se a sua ação não significou logo o fim da fome e da miséria, como acontece ainda hoje, ela deu origem a uma permanente revolução na história, em nome da dignidade indestrutível de todo o ser humano. Deus está do seu lado e luta pela sua causa. Quem mais se quer juntar a Ele?

Jesus foi o primeiro a fazê-lo: não excluía ninguém. Tinha amigos entre as prostitutas e os publicanos (Lc 7,34). Todos, menos aos que se consideravam cumpridores, se sentiam bem junto d’Ele, porque intuíam que ali havia um novo caminho para Deus: eles sentiam-se amados e perdoados mesmo antes de o pedirem.
O Deus de Jesus Cristo é amor e misericórdia e, por isso, diz aos fariseus de então e de sempre: «Ide aprender o que significa: prefiro a misericórdia aos sacrifícios» (Mt 9,13).


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